quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A primeira aula




Por José Luiz Passos

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Durante janeiro, o blog da Companhia das Letras recebe colaborações semanais de autores convidados a escreverem sobre as suas primeiras vezes: a primeira vez que leram seu autor favorito, primeira viagem, primeira vez que sentiram pertencer a um grupo e outras experiências marcantes. Em sua coluna deste mês, José Luiz Passos escreve sobres sua primeira aula de literatura brasileira no exterior.

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Quando minha filha tinha sete anos, na primeira semana de aulas da segunda série, num teste em sala, ela desenhou um balão com palavras ligadas por setas e escreveu em inglês a seguinte frase: “As casas das formigas ficam, em geral, perto de árvores, para que elas possam usar a casca delas para construir uma casa muito forte, com quartos fortes que não podem ser destruídos por nenhum dos inimigos que queiram incomodar as valentes e fortes formigas, que constroem casas escondidas, com coisas seguras que elas encontram nos diferentes lugares para onde viajam, quando não estão tão ocupadas e têm mais tempo para descansar do trabalho, assim como as férias de verão que nós, os humanos, gostamos de ter após um longo ano na escola, onde aprendemos todo dia coisas novas para mostrar aos nossos pais.”
Essa longa frase me ajuda a pensar no vazio que colore uma primeira aula de literatura brasileira no exterior. Num apanhado da poesia brasileira moderna para alunos americanos — situação em que me encontro neste semestre — não há como contar com um corpo de referências comum aos alunos. As disciplinas são abertas à graduação e à pós; os alunos vêm de vários cursos e departamentos. Em sala é preciso especificar as coisas uma por uma, e contar as histórias desde o começo, de maneira acessível a qualquer interessado. Por isso, quando volto a pensar na frase da minha filha, noto com maravilha a conexão realizada entre a astúcia de uma construção forte e discreta — uma casa invisível — e a distância percorrida pelas formigas, em busca de algo diferente, ao mesmo tempo novo e seguro, que a criança de sete anos equipara às viagens de férias, no verão, rumo ao distante país dos seus pais.
O desafio de uma primeira aula no exterior é parecido a esse sentimento. O ensino da matéria brasileira fora do Brasil não será, jamais, mera transposição de métodos, programas e conteúdo brasileiro. É, ao contrário, um modo de pensar essa matéria a partir da distância — real e simbólica — entre a experiência que se quer contar e a função que essa experiência terá longe do lugar em que ocorreu. Nos Estados Unidos, o professor de literatura estrangeira — ele próprio estrangeiro ou não — existe como ponte para algo que não está necessariamente ali, que não pode ser entendido por contiguidade nem testemunhado no caminho de casa. Sua lição é algo que apenas se torna visível quando mediado pelo aprendizado de outra língua, pelo ofício da tradução ou, em última instância, pela própria viagem.
Com isso quero dizer, simplesmente, que minha dependência com relação a canais de comunicação material — as linhas aéreas e os correios, por exemplo — é traço constitutivo do ofício que exerço, tal e qual as formigas que buscam “coisas seguras”, safe things, fora de casa, para construir as suas casas. Nos últimos dez anos intensificou-se a presença de professores brasileiros atuando em universidades norte-americanas. A lista hoje é numerosa; quando cheguei à Califórnia, há exatos vinte anos, era bem menor. O vazio da primeira aula, aquele causado pela distância material e simbólica do professor, é o limite de um intervalo comum ao magistério cuja tópica e os profissionais vêm de longe e vão longe, em busca do que precisam levar para a sala de aula. Para esses, o ensino é a prática de uma perspectiva em trânsito.
Visto de fora, a grandeza dessa primeira aula está precisamente no instante em que os alunos se dão conta de tal esforço; do fato de que estão lidando com valores e bens culturais que vêm de longe, demoram a chegar, custam a ser repostos, pedem o esforço de outra língua e a mediação levada a cabo por um profissional no cruzamento de fronteiras. Essa prática, que define parte de nossa inserção no mercado intelectual internacional, me lembra a figura de um tropeiro, cujos cestos, matulas, cangalhas e alforjes, recompostos de trens a cada rota, são arrastados através de campo extenso, para serem trocados lá adiante com quem precise ou, simplesmente, queira aquilo que vem de outro lugar.
Por mais que se busque entender as dinâmicas de produção, tradução, circulação, catalogação e canonização das nossas obras clássicas e contemporâneas, em congressos, teses e sites, resta ainda, mais humilde e menor, a lógica das formigas; resta a pergunta do tropeiro: qual é o livro que você levaria numa viagem longa, por companhia — livro que fosse passado adiante no encontro com alguém tão diferente de você e tão alheio ao seu ponto de partida que, talvez, sequer tal livro tenha para esse estranho o sentido de uma companhia? Qual é a história que vale a pena ser espalhada como quem espalha feijões, sem contar que eles necessariamente venham a se desdobrar naquelas plantas majestosas que nos levam às nuvens? O vazio da primeira aula é um ensaio na resposta a essas perguntas. E nelas cabe um futuro em que a literatura brasileira pertença, cada vez mais, a um número maior de brasileiros e também, igualmente, em outras línguas, àqueles que sequer puseram os pés no Brasil.

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José Luiz Passos nasceu em Catende, Pernambuco, em 1971. Formado em sociologia, doutorou-se em letras nos Estados Unidos. É autor dos ensaios Ruínas de linhas puras(1998) — sobre as viagens de Macunaíma — e Romance com pessoas (originalmente publicado em 2007 e reeditado pela Alfaguara em 2014). Também pela Alfaguara, publicou em 2009 seu primeiro romance, Nosso grão mais fino, selecionado para o prêmio Zaffari & Bourbon de literatura, e, em 2012, O sonâmbulo amador, com o qual venceu o Grande Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa em 2013. É autor de uma peça de teatro e de contos publicados no Brasil e no exterior — inclusive na revistaGranta em português. Vive atualmente com a esposa e os dois filhos nos Estados Unidos, onde é professor titular na Universidade da Califórnia em Los Angeles.

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