quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Falsa partida

Por Juan Pablo Villalobos

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Éramos seis, um número perfeito para uma oficina literária. Cinco mais um. Ou seja, cinco opinando e um lendo. Um número ímpar de juízes é condição imprescindível para qualquer tribunal. Eu poderia mencionar os nomes reais de meus colegas de oficina, mas não sei se eles gostariam do jeito como vou retratá-los, reconhecendo minha tendência como narrador para a caricatura e o sarcasmo (eu me conheço).
Éramos cinco homens e uma mulher. Peço desculpas para os defensores da igualdade de gênero, mas tenho o imperativo de ser fiel à verdade. Ao que eu acredito ser a verdade. Às minhas lembranças, quero dizer. Fazendo uso de uma licença poética, digamos que meus colegas se chamavam Darkson, Liberalino, Grilo, Valdisnei e Confúcia. E havia eu, claro. Tínhamos entre 20 anos (Confúcia, que além de ser a única mulher do grupo era a mais nova) e 35 (Liberalino, que era copy numa agência de publicidade). Eu tinha 22 anos, o que quer dizer, se a matemática não falha, que isso aconteceu há quase 20 anos, em 1996, em Guadalajara, no México.
Quem tinha organizado a oficina era Darkson, amigo meu, de Liberalino e de Valdisnei. Eu havia convidado Grilo, um colega da faculdade, e Confúcia, a melhor amiga de minha namorada daquela época. Darkson era fã de Henry Miller; Liberalino, de Juan Rulfo; Grilo, como eu, de Jorge Ibargüengoitia; Valdisnei, de Paul Auster; e Confúcia lia poesia (gostava de Rilke). Para começar, não tínhamos muitas afinidades literárias. Mas estávamos empolgados. Muito empolgados. Todos queriam ser escritores. Pior ainda: todos tinham certeza que iam virar escritores. Quem sabe por quê. E, especialmente, para quê.
Eu escrevia desde os 14 anos. Contos, poemas, músicas para a banda de rock dos meus amigos da cidadezinha onde morei até a adolescência. Mas nunca tinha participado de uma oficina literária. De fato, minha “produção literária” tinha tido, até então, uns leitores sem nenhuma noção, interesse ou intenção crítica. A primeira vez que divulguei uma de minhas obras literárias foi quando, depois do jantar de Natal, li um conto para minha mãe e minha avó enquanto elas lavavam a louça. No conto, uma criança se suicidava. Era um conto de Natal, lógico. Quando terminei de ler, minha mãe e minha avó só assentiram, achando, tenho certeza, que eu precisava de um psiquiatra e não de um crítico literário. As vítimas de meus poemas, quer dizer, minhas leitoras, eram (quem mais?) minhas namoradas da adolescência. Para mostrar meu amor, eu acabava crucificado em meus poemas (minha cidadezinha é muito católica). Elas suspiravam. Não sei se por amor, tédio ou susto. Quanto à banda de rock, era mais simples: eu traduzia (mal) as músicas do The Cure e as arrumava para que rimassem. Os caras da banda, que se chamava Mentes Invertidas, ficavam sempre felizes (não sabiam inglês).
Então, para mim, a ideia da oficina literária era ao mesmo tempo fascinante e assustadora. Eu sabia que para melhorar a escrita eu precisava de ajuda, mas não sabia se estava pronto para escutar  e aceitar  outros aspirantes a escritores enunciando os defeitos dos meus textos. Por isso, me preparei cuidadosamente e decidi levar à primeira sessão da oficina aquele que considerava meu melhor (e único) conto. Quer dizer, o único verdadeiramente terminado. O único “redondo”. Se chamava “Salida en falso” (“Falsa partida”). Se chama, de fato. Li agora de novo, ele está guardado entre meus arquivos no seguinte endereço: Mis Documentos/j.p./Cuentos/Primer volumen. Que pretensioso, pelamordedeus! “Primeiro volume”. Como se eu já tivesse minhas “Obras completas”.
O conto tem uma frase boa, uma ideia boa, que eu poderia escrever hoje (talvez a plagie): “Por alguma razão incompreensível, as pessoas chegam à conclusão que quando você ganha você é feliz, que você nasceu para isso, que esse é o caminho que você deve seguir”. O conto é sobre um menino traumatizado pelo bullying na escola. O menino é selecionado para fazer atletismo e resulta que é muito bom correndo. Muito bom mesmo: um campeão. Mas nem assim ele consegue superar seu trauma, porque ele não percorre um caminho que leva ao sucesso, como as pessoas estruturadas que estabelecem objetivos na vida. Ele foge para o sucesso (ainda gosto dessa ideia). Uma confissão: esse conto tinha um pano de fundo autobiográfico, pois eu sofri bullying entre os 6 e os 8 anos, apesar de naquela época o conceito de bullying não existir  a gente chamava simplesmente de “ir pra escola”.
E agora, ou seja, naquela noite de 1996 (íamos começar às 20h, no apartamento de Darkson), eu tinha medo de sofrer um novo tipo de bullying, o pior de todos os bullyingsconhecidos: o bullying literário. Tinha medo, especialmente, de Darkson e Liberalino. Eu sabia que Grilo e Confúcia seriam condescendentes. Valdisnei era, para mim, uma incógnita. Mas Darkson lia Kerouac e Bukowski, além de Henry Miller, bebia tequila do gargalo e podia ser despiedoso. Liberalino tinha 35 anos, 35 anos!, mais de 10 anos a mais de experiência de leitura e escrita!
No começo da sessão pedi, quase tremendo, para ser o último a ler. Ninguém se opôs, lógico: todos, exceto Confúcia, queriam ser os primeiros. Confúcia não queria ser nem a primeira nem a última. Falou que não tinha trazido nada para ler por enquanto. Falou a mesma coisa em todas as sessões da oficina, tornando-se assim a participante mais enigmática. A única coisa que ela fazia, às vezes, era nos contar alguma imagem para um poema, alguma cenografia para uma peça de teatro (era atriz), algum diálogo para um roteiro de cinema (estudava cinema). Era, de fato, a melhor de todos, a que tinha as melhores ideias: a escritora que não escrevia, quase uma artista conceitual.
Darkson foi o primeiro a ler, intercalando parágrafos com goles de tequila, imitando Bukowski (isso eu só fiquei sabendo mais tarde, ao assistir umas leituras de Bukowski no YouTube). Ninguém entendeu o que ele lia. Era meio incompreensível por estar mal escrito e meio incompreensível por ser misterioso. Como eu não sabia o que dizer, minha única sugestão foi trocar um ponto de lugar. Ele achou que isso era uma afronta pessoal e ficamos discutindo a sintaxe desse parágrafo por mais de vinte minutos. Achei que, pelo visto, o que eu tinha que fazer era beber mais cerveja, e mais rápido.
Grilo leu um conto que havia trabalhado em outra oficina literária: um conto triste em que imaginava o futuro medíocre de um colega da faculdade que a gente realmente odiava. Juan Carlos Onetti já escreveu esse conto mil vezes. E mil vezes melhor. Isso foi, de fato, o que Liberalino falou. Darkson reclamou que a prosa de Grilo era transparente, como se entender o que você leu fosse um defeito gravíssimo. Valdisnei apoiou Darkson, mas a interpretação dele era que a prosa de Grilo precisava de mais “intensidade poética”. Confúcia falou que gostava do conto. Eu também, exceto por um ponto e vírgula que sugeri trocar por um ponto. Grilo falou: “ok”.
Depois veio o desastre: as cinquenta páginas do fragmento de romance de Valdisnei. Um triângulo amoroso com intensidade poética demais, lido no tom monocórdico, persistente e teimoso de Valdisnei. Demorou mais de uma hora, que o resto de nós dedicou, além de escutar, a visitar a geladeira para pegar mais e mais cerveja. Quando terminou, todo mundo, exceto Valdisnei, estava bêbado. Daí Darkson, acostumado a manter a lucidez em estados etílicos, salvou a noite: falou que já era muito tarde e que seria melhor deixar os comentários do romance de Valdisnei para a próxima sessão. Liberalino disse, condescendente, como irmão mais velho, que era verdade e que, aliás, ia adiar a leitura dele para a próxima sessão também, para que pudéssemos dedicar tempo à minha leitura. Era isso, chegava minha vez.
Cof, cof. (Um gole de cerveja).
Li as 1971 palavras do conto (revisei o documento agora). Terminei. Todo mundo ficou em silêncio, mas era um silêncio confortável, que eu gostava. Eu gostava, na verdade, de olhar os rostos dos cinco. Um pouco surpresos. Um pouco eufóricos. Quase felizes. Cacete, falou Liberalino. Muito bom, falou Darkson. Arrasou, falou Grilo. Muito bom mesmo, falou Valdisnei. Parabéns, Pablito, falou Confúcia (ela me chamava de Pablito). Na verdade o conto não era tão bom (já falei que talvez só tivesse uma frase boa, uma ideia boa). Na verdade a gente estava muito bêbados. Na verdade a gente queria era parar com essa porra de oficina e começar a festa. Mas essa foi a primeira vez que eu senti que era escritor.
Tradução do portunhol para o português por Andreia Moroni.

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Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal.

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