12 janeiro 2016, 1:51 pm
Por Carol Bensimon
Esse cara chamado Philip Roth. Um dia uma grande fã dele me deu Patrimônio de presente, mas eu demorei muitos meses para ler porque se tratava de um livro sobre o fim da vida de um homem, o pai de Roth. Sou medrosa com livros ou filmes que colocam doenças no centro da trama e, convivendo naquele momento com uma doença incurável em meu pequeno núcleo familiar, a última coisa que eu podia pensar era em ler sobre alguém que estava prestes a morrer página após página. Quando me senti finalmente preparada, foi devastador. Era um livro irreparável, sem dúvida, que acabou me ensinando uma grande lição: as verdadeiras obras de arte, mesmo quando tematizam a morte, contêm uma grande potência de vida.
Mês passado, meu pai começou a me falar sobre Fantasma sai de cena (meu pai, aliás, já leu muito mais livros de Roth que eu). Contou-me que, nesse romance, o famoso narrador Nathan Zuckerman discorre sobre uns tais de “momentos irrefletidos” (rash moments, no original), momentos esses nos quais tomamos em segundos, baseados em nada, uma decisão que pode definir/influenciar os próximos anos ou décadas de nossas vidas. Não sei por que meu pai começou essa conversa sobre os momentos irrefletidos, mas no dia seguinte ele apareceu aqui em casa com o tal livro, e eu me lembrei uns instantes depois que eu já tinha na verdade uma edição paperback desse mesmo romance, Exit ghost, e que ela devia estar soterrada por outros livros na parte de baixo do meu criado-mudo. Estava.
Você pode estar cansado, como eu, de ler livros cujos protagonistas são escritores, mas outra lição que Roth nos dá é que isso só é ruim quando o escritor é ruim. Quando ele é o Philip Roth, o que está posto em cena faz sentido para mais do que um pequeno grupo de escritores que se consome e se elogia porque aqui estamos tratando não de picuinhas ou de detalhes da vida literária que não interessam a quase ninguém, mas de dramas humanos com os quais todo mundo está inclinado a se identificar.
Zuckerman tem setenta e poucos anos em Fantasma sai de cena. Passou os últimos onze isolado em uma casa no meio do mato, tendo pouco contato com pessoas e absolutamente nenhum tipo de relação amorosa ou sexual. Não lê os jornais, não vê televisão, não dá entrevistas. Está distante, quer escapar, como diz muitas vezes no livro, do momento presente, encontrando refúgio na natureza e na arte. Mas o livro começa quando ele precisa ir a Nova York a fim de se submeter a uma pequena cirurgia. Então um dia abre o jornal em um café e lá está um anúncio que imediatamente chama sua atenção: um casal de escritores na faixa dos trinta anos quer trocar, durante um ano, um apartamento em Nova York por uma casa isolada em algum lugar. Nathan decide responder o anúncio.
O seu momento irrefletido número um aconteceu mais de uma década antes, quando decidiu trocar a cidade pelo campo. Agora o momento irrefletido número dois trata do caminho inverso, o impulso absolutamente injustificável de voltar à cidade, bem como de se aproximar de Jamie Logan, a texana aspirante a escritora que faz de pano de chão a racionalidade do septuagenário.
Estou deixando de lado outros personagens e detalhes da trama pois essas questões— vida mundana x vida dedicada à arte, cidade (momento presente) x isolamento (tempo imensurável), mais a irracionalidade temporária causada por um amor passional — já me são suficientes. Ainda acho impressionante como certas obras, lidas em determinados momentos da vida, têm o poder de balançar nossas estruturas ou de reorganizá-las com um sopro de lucidez, dependendo do caso. É curioso que as pessoas procurem “soluções” nos conceitos duros e nas afirmações categóricas dos livros de auto-ajuda, enquanto o contato via ficção com o ridículo, o sublime, a dúvida parecem ter um efeito muito mais eficaz (talvez justamente pelo fato de a literatura não estar comprometida com a ideia de “um efeito eficaz”).
Obrigada, pai.
* * * * *
Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário